CAPÍTULO ZEROEsta viagem começa com a minha chegada à minha cidade, ontem de manhã, vindo de uma noite de excessos no Porto. Às sete e cinquenta e um apanhei o “suburbáno” e uma hora e pouco depois já estava – como uma flecha – na minha esplêndida cidade: Guimarães. Como qualquer pessoa que aqui chega de comboio, desembarquei na gare de Guimarães (a
gêgê, como é carinhosamente apelidada). O que se segue, é uma autêntica epopeia de seiscentos e oitenta metros, que começa à saida da dita gare, pouco depois das nove da manhã.
CAPÍTULO UMQuem sai da Estação, uma das primeiras coisas que vislumbra é a pastelaria Património Mundial – onde me sentei a pequenoalmoçar e a ler o Desportivo de Guimarães. Esta pastelaria tem a virtude de colocar uma série de questões à cidade, à sua ordem, ao seu espaço e ao seu espírito. A primeira delas é “o que faz uma pastelaria com esse nome num sítio daqueles?" Era a mesma coisa que ter uma Medieval no bairro do Salgueiral ou um restaurante “O Modernista” na rua de Santa Maria. A segunda questão é esta: quem é que escolheu o logo desta pastelaria? Será que as entidades que fiscalizam essas coisas dos logos não se apercebem do básico? É que o dito mais não é que o uso descarado, cuspido e escarrado do símbolo da Unesco do Património da Humanidade acrescido de um P e de um M no seu meio. A continuar assim, não se admirem que haja um clube chamado Os Afonso Henriques que tem um emblema praticamente igual ao do Vitória, só que o nosso Rei não tem barba e bigode. A terceira é uma Mania Vimaranense: porque é que se chama Património/Fundador/Conquistador/ a cerca de vinte e cinco por cento do nosso comércio? Porque não Café Silva? Outra dúvida que esta pastelaria põe a nu é que nunca se sabe muito bem o que Guimarães verdadeiramente é: se Património Mundial, se Património da Humanidade, se as duas coisas, se uma, se tudo com maiúsculas ou não. Enfim, eram as dez da manhã quando de lá saí confuso, humilhado na minha condição de ser um vimaranense sem resposta. E lembrei o “Guimarães que Amanhece”: “Cansados vão os corpos para casa...”
CAPÍTULO DOISE cansado andei cerca de três metros até me confrontar com um dos mais acertados statements que esta cidade ostenta: uma placa de um stand de automóveis que diz – e cito – Braga Mal. Nada mais certo, pensei, enquando o sol me aquecia o toutiço. Só falta mesmo o "Braga Mal, Guimarães Bem", nesta
sempiterna luta das forças do Bem contra Braga. Passada a Residencial Transmontana, onde vivi tórridas noites de lascívia (antes de ter posses económicas que me permitissem ir passá-las para o Hotel Fundador e, agora, para a Pousada da Costa), vislumbro a lendária Mobiladora da Estação: uma loja com tradição aberta aos desígnios dos tempos que correm, uma vez que já vende mobiliário sueco feito em Paços de Ferreira e tem no seu letreiro “estófos” escrito, precisamente, com acento no “o”. Não resisti e após vinte minutos de conversa em que o proprietário da Mobiladora me advertiu que os “acentos” ali eram outros, adquiri um belíssimo banco sueco igual ao dos ginásios, só que feito em Estocolmo numa fábrica em Codessos – que eu não sabia que era nos arredores dessa insígne metrópole.
CAPÍTULO TRÊS
Estava, pois, pronto para iniciar a descida da mais fascinante avenida de Guimarães, da única artéria da cidade digna desse nome: a Avenida D. Afonso Henriques. Uma hora e meia depois de ter chegado à Cidade, estendiam-se, à minha frente, quinhentos e cinquenta metros de rua que culminam numa mega paragem de autocarros a céu aberto. A imponência de uma grande cidade está toda aqui, nesta rua, na sua grandeza e nas suas histórias.
CAPÍTULO QUATROE a primeira história acontece logo no exacto momento em que deixo que o meu cabelo seja massajado pelas mãos competentes das cabeleireiras da Belle Femme. Sei que isto de cortar o cabelo numa não-barbearia não é muito de homem, nem se fala de futebol nem de mulheres. Mas ao menos vêem-se, coisa que é rara – por temor, quem sabe – numa barbearia típica. Era quase meio dia, afinal de contas. Tempo ideal para ir comprar mobiliário de escritório na Gilfer. Fui recebido como um rei pelo senhor Gilfer, que me aconselhou vivamente a comprar uma mesa de macacaúba que ele tinha feito para um industrial que, entretanto, fugiu para o Brasil, impossibilitando, assim, o senhor Gilfer de fazer duzentos contos. Ajudei-o eu, ainda meio zonzo com o corte de cabelo depois do pequeno almoço. E segui, rua abaixo, de mão no bolso, a assobiar contente, com o sol a abrilhantar o meu passeio descendente. Próxima paragem, o Centro Cultural de Vila Flor. Coisa rápida, já que praticamente e em todo o Portugal, a cultura só começa depois das duas da tarde. Como ainda só era meio dia, visitei a Caixa Para Guardar O Vazio e os Percursos Na Paisagem. Ainda tive tempo para me altercar com o rapaz que estava no café bar e que não estava a passar Rachmaninov, quando um final de manhã solarengo assim o exige.
CAPÍTULO CINCOAtravessei o passeio e aproveitei para ir contemplar, de um ponto de vista poético, um dos melhores miradouros da cidade: aquele que nos é oferecido na entrada da Garagem de Serviço Vila Flor: vi, sobretudo, uma cidade de betão a sonhar em ser maior, a querer crescer. E, claro, o Pub Paris, centro de umas quantas noites de deboche em tempos loucos de juventude. Era uma da tarde quando desci a rampinha e dei por mim a beber um verde tinto zurrapeiro no Telheiro, uma verdadeira instituição desta cidade, já que está aberta quase todas as horas do dia e da noite. Quando regressei à Avenida já passava das três da tarde e eu já estava bem bebido, de lábios enegrecidos pelo sumo de uva. O que se segue, não me lembro bem. Sei apenas que fui expulso do estabelecimento de restauração Filho do Zé da Curva, por me ter insurgido com o facto de, na sua tabuleta, estar escrito Pastelaria-Cervejaria quando, na verdade, o dito estabelecimento é um restaurante. É que o binómio Pastelaria-Cervejaria não combina: ou se é uma coisa ou outra, sendo que a uma pode acoplar-se o Confeitaria ou o Café e a outra pode acoplar-se, igualmente, o Café e o Snack Bar. Acusei o dono de ser um infinito poço de contradições e mandei-o dar uma curva antes de ele me expulsar do seu estabelecimento. Creio que ainda fui partir dois
cooling systems ao Jordão, numa tentativa desesperada de voltar a entrar naquele teatro.
CAPÍTULO SEIS
Depois deste lamentável episódio que mancha uma épica descida da Avenida Afonso Henriques, mais outro que em nada abona a meu favor: muito embriagad, fui tentar comprar ecstasy à Drogaria Moderna. Nada mais natural, pensei eu, atendendo ao nome do estabelecimento. Mas pelos vistos enganei-me e a coisa quase que acabava com polícia à mistura. Foi tempo, então, de ir restabelecer forças e de me alimentar convenientemente. O final da Avenida estava à vista e era preciso acabar em grande. E foi isso que fiz, escolhendo o Café Danúbio para comer Nervos de Vitela à Danúbio. Estavam deliciosos: pareciam pastilhas elásticas de sabor a carne. Bebi mais três copos de verde tinto da casa, produzido nas traseiras de uma tinturaria na Trofa e tudo acabou como começou: comigo a interrogar-me sobre o porquê de um gorduroso café ter um tão fino designativo. Guimarães é uma cidade misteriosa. Muito misteriosa.
CAPÍTULO SETEJá restabelecido dos incidentes dos últimos cem metros da descida da Avenida, atingi, sete horas depois de a ter começado a descer, o largo Valentim Moreira de Sá (tetravô do “matador” que representou o nosso Vitória). Foi aí que me apercebi que tinha que apanhar o comboio para regressar ao Porto.
Jacques Guimarães