Granito. Imensos blocos de granito reluzentes depois das chuvas, com a chegada dos primeiros raios de sol. A pedra e a memória. O granito e a minha versão da história da minha cidade, a minha verdade sobre o que não vivi nem tão pouco li: este é um lugar de gajos com força bruta, delicadamente bruta no modo como gravam a pedra dura, no modo como abraçam o amigo, no modo como temem o Senhor, no modo como amam o lugar de onde são e tudo que lhe pertence. Este é um lugar que nasceu, parou e voltou a nascer parado, a querer que o andar para a frente seja voltar mil anos atrás. Uma cidade reluzente sem tesouros nem quimeras, uma cidade com verdades que não são monumentos e monumentos que não são verdade. Uma cidade feita de verde e de cinza.
- Eu tenho um orgulho filho da puta em ser daqui.
diz-me o professor da rua de Camões, bêbedo como se amanhã não houvesse.
– Esta cidade pode não ter poemas nem canções, mas é uma cidade filha da puta, percebes? Aqui começou esta merda de país, quer queiram quer não, e mesmo assim é uma grande cidade.
afirma ele convictamente antes de perguntar onde vamos beber o próximo fino - os próximos finos, afinal - antes de me explicar que a grande batalha até pode muito bem ter sido longe daqui mas que tal distância não importa, já que a História se encarregou de escrevê-la ali mesmo atrás do Castelo. Somos únicos, como em tantos outros lugares. Afinal, o que fica é a ciência da História, não a verdade que sabemos uns sobre os outros, se é que ela existe.
- Símbolos. Esta cidade está-se a cagar para a realidade. O que esta terra quer e precisa é de símbolos, não achas?
Metemo-nos no carro, já bem bebidos, e fomos fumar um charuto ao Pio Nono.
- Olha para esta merda. Mais uns quilómetros quadrados e até parecia Roma entre as colinas.
- O Lou Reed tinha uma música chamada Small Town.
digo-lhe entre duas baforadas.
- Eu quero que esse gajo se foda, nunca cá viveu, nunca cá veio tocar, não sabe o que é uma cidade pequena onde toda a gente se conhece, toda a gente se preocupa e toda a gente se intriga.
Olha-se a cidade dali de cima e sobressai o campo da bola, circo máximo da nossa perífrase, tal como as esculturas de Soares dos Reis e de Cutileiro. É engraçado pensar numa cidade parada entre o século catorze e o século vinte.
- O que seria esta cidade se Santiago por aqui tivesse ficado, se um rio por aqui tivesse decidido passar?
Duas da manhã de novo no centro da cidade. O Antunes todo enterrado dá o cu atrás do Castelo. Sorri e diz-nos adeus: aluno do professor, meu colega de escola. Franz Ferdinand na rádio local, coisa rara. Vamos à procura de cerveja. Dois noitibós passeiam pela Muralha, provavelmente falam de futebol, de gajas e daquilo que o Siza fez à Praça Mumadona.
- Esta cidade precisa de ser notícia, está-lhe nos genes.
insiste o professor, vidrado no descer da Muralha, como se esta acontecesse à medida do seu olhar.
- Esta cidade precisa de um poema com quatrocentos anos de idade, de uma reconstrução pombalina, de uma canção do estado novo, de uma Taça de Portugal.
digo-lhe enquanto penso em todas as hipóteses que tive em não voltar aqui.
- Já fui a muito sítio do mundo, mas é aqui que quero morrer. Ao contrário do cabrão do Afonso Henriques, eu quero chegar aqui a tempo.
- Chegar a tempo?
- Sim, o gajo queria vir morrer aqui, mas só aguentou até Coimbra e teve que finar-se lá.
Vivemos sob o signo de uma simples figura. O penúltimo grande herói da cidade foi-se embora há quase mil anos, o último era um brasileiro jogador de futebol que também zarpou para Lisboa: desde então que a cidade não tem um ícone pop, desde então que a cidade vive um luminoso crepúsculo. Talvez por isso o professor bêbedo queira morrer aqui. Não sem antes tentar ser um herói como todos nós. Perco o formalismo e começo a tratá-lo por tu. Meia hora depois estamos a falar sobre festas numa casa em Silvares, onde ambos participámos em alturas diferentes, de droga comprada em cafés de subúrbios campestres ao raiar do dia, de gratificações dadas a brigadas de trânsito em rotundas.
- I’m a loser, baby, so why don’t you kill me.
canta o professor, já cambaleante, rumo ao night club.
Quando for esperto quero falir uma fábrica. Ter dinheiro. Ir às putas a Vigo. Ser comendador. Ter um filha da puta dum carrão. Snifar coca em mesas de mármore polido. Contratar arquitectos para me fazerem casas de campo. Ser político ou dirigente desportivo. Quando for esperto quero ser um puro-sangue.
- Manda vir mais dois vodca limão.
ordena o professor interrompendo-me os sonhos.
- Não queres antes uma eslava?
pergunto-lhe eu, entorpecido por todos os vapores de uma noite demasiado longa.
- Já tenho uma amante na Póvoa.
responde ele mostrando-me uma folha de salários da fábrica de felpos onde ela trabalha.
- O que me fode é que ela não sabe escrever português, é erros atrás de erros
lamenta-se o professor, de olhar demasiado lívido.
Não aprofundo a conversa e limito-me a dizer
- Vamos à discoteca
trocando o v pelo b.
Tudo igual em todo o lado. Camisa branca, fedor a perfume, calça de ganga. Cinco da manhã e não sei como se me aguentam as sílabas. Noite plena. Só faltava dançar. Facilito e acabo por perguntar a uma falsa loira toda benzoca se gosta do último single da Madonna. Ela não percebe, fala de uma marca de alta-costura que costuma comprar, nega a proveniência das suas calças desse mesma marca e confessa que as mesmas talvez lhe estivessem melhor um número acima. Ver e ser visto, afinal. O professor diz-me sorridente que vai dar uma aula ali para os lados da universidade. Desisto de tudo, e cambaleantemente vou-me embora daquele lugar. Acabo a noite ao nascer do dia a lembrar-me dos poemas de Bob Dylan e a comer qualquer coisa no café Milenário. Minutos depois, dizem-me que o professor da rua de Camões teve um ataque cardíaco fulminante, junto ao castelo de Guimarães.
JG