A ideia de fazer uma pequena viagem na minha cidade começa com a conjugação de dois terríveis factores de sábado à tarde: em primeiro lugar, um terrível tédio que me acossa numa mesa janeleira no café Óscar, seguido de uma terrível vontade de me embebedar para esquecer o dito tédio. Malho, de imediato, dois cafés com cheiro, acoplados de dois portos e não demoro a sentir os vapores etílicos que a soalheira tarde de Inverno me oferece. Nada de anormal para quem está em jejum. Consequentemente, as ideias começam a fluir como dejectos industriais no Ave: já sei, vou à Penha de teleférico, acto de vimaranensidade que não pratico desde noventa e oito.
Nas Hortas, esse baluarte de uma pretensa nova centralidade vimaranense, respiro o cê ó dois acabado de libertar por um Seat quitado e caminho rumo à gare do teleférico, olhando o betão à minha volta como quem rói uma laranja na falésia. O parque das Hortas é um fenómeno curioso: escadas em betão, prédios, lojas abandonadas, um ribeiro nojento, mais betão irregular e um jardim abjecto. Há alturas em que a sua desordem, fealdade e frieza fazem lembrar as velhas cidades soviéticas. Por momentos, julgo-me em Odessa. Mas não, estou mesmo no coração de Guimarães, Minho, Portugal. Penso quem terá sido o iluminado que se lembrou de urbanizar aquele parque assim. Lembro-me do filme Dragão Vermelho e do Professor Hannibal Lecter a comer um violoncelista de uma orquestra só por que toca mal. Não vou tão longe, mas quase automaticamente penso em movimentos de cidadania que, através de um ou dois pares de tabefes, explicam a harmonia arquitectónica e o bom gosto a quem autoriza fazer e quem faz aberrações daquelas. Em três minutos, tenho vergonha daquilo tudo e apetece-me vomitar de nojo, acto que pratico, discretamente, num saco do mini preço abandonado numa cabine do teleférico, já a meio caminho entre a cidade e a serra.
Depois de uma viagem oscilante, chego à Penha - será serra, será montanha? - e contemplo de perto a igreja da Nossa Senhora homónima. É quase tão feia como a de Santa Luzia, reparo, enquanto constato que a arquitectura religiosa do século XX vimaranense é pautada pelo parolismo e mau gosto. Bons tempos os dos séculos XV e XVI, lembro com saudade. Entro na Igreja convencido que dois Pais Nossos me vão aliviar de tão grande tensão, mas engano-me. O interior da Igreja de Nossa Senhora da Penha, a nível de fealdade, dá quarenta a zero à sua fachada. Penso na quantidade industrial de pessoas que ali se casam por falta de referências de estética eclesiástica, penso na infelicidade que devem sentir ao saberem que o seu amor ficou selado ali, num lugar tão kitsh. O aterro de Gonça ou o Parque Industrial de Ponte, dentro do género, são bem mais bonitos. Tenho ainda tempo para ouvir uma mádame dizer “ò Saundra, despaicha-te que tiemos que apanharu telégrafo”.
Mais desolado fico quando vejo passar o comboio turístico a debitar decibéis de rancho folclórico, pejado de idosas mais ou menos embriagadas. Como diriam os ingleses, justos céus, mas porquê? O cenário é cada vez mais dantesco e só a vista da cidade, qual Los Angeles vista daquele miradouro imortalizado por Jimmy Dean em Fúria de Viver, me faz sentir levemente mais aliviado. Ligo para o meu psiquiatra que me aconselha a ir às Merendas. É lá que termino a tarde, a carpir as minhas tristezas em malgas de verde tinto e deliciosos bolinhos de bacalhau. Afinal, descontando a flora e os climas românticos do Pio Nono, é só mesmo por causa deste excelente estabelecimento de restauração que vale a pena passar uma tarde na Penha.
Jacques Guimarães.