No passado sábado, decidi largar a leitura de Admirável Mundo Novo, de Huxley, e rumar ao Centro Histórico de Guimarães para deambular pela sua animação nocturna. Aqui ficam as minhas notas, as minhas vivências empíricas, narradas na terceira pessoa.
1 – Jacques Tati de Oliveira Guimarães não podia estar mais espantado quando, ao cruzar a Porta da Vila, entrou no Largo da Misericórdia, e avistou a Rua da Rainha. A animação estava ao rubro e ainda só eram nove da noite. "Está aqui toda a gente", pensou ao entrar num estabelecimento para o habitual café com cheiro. Ao solicitar o dito, foi envolvido numa toada de cânticos que lhe diziam “Vitória até mais não poder” ou algo parecido. Num supetão, e contra todas as expectativas geradas pelo calor do lugar e da noite, alguém lhe pôs um cachecol do Vitória ao pescoço. Alérgico ao polyester, pediu, algo transpirado, que lhe retirassem o adereço do seu frágil pescoço. A resposta veio sob a forma de estalo na cara e conselho sábio: “se não és do Vitória, baza daqui”, alguém lhe disse. Jacques ainda tentou mostrar o seu cartão de sócio, mas não foi a tempo. Agredido e humilhado, dali se foi embora.
2 – Jacques Tati de Oliveira Guimarães decidiu rumar ao Centro Cultural. Depois da bronquice, almejava por alguma erudição. Ao chegar ao bar do dito, é confrontado com um insuportável fedor proveniente de uma mescla de perfumes, idêntico àquele que se sente quando se passa por uma perfumaria no centro da cidade. A este aroma nauseabundo, juntava-se uma massa humana toda vestida de igual em tons de branco ou pastel. De imediato pensou tratar-se de uma despedida de solteiro ou de uma festa branca, o que em nada se coadunava com a natureza do local. Jacques almejava qualidade e encontrou banalidade. Pediu um escocês velho e bebeu-o num trago só, só se tendo apercebido que de novo se tratava quando o dito escocês no seu estômago se entranhou. Aquilo caiu-lhe mal e, por dois instantes, Jacques ficou petrificado. Nisto, um sicrano amerengado perguntou-lhe se estava a olhar para a sua gaja. Jacques não respondeu – tamanho enjôo era o que sentia – e, de imediato um estalo na cara levou, seguido de outro sábio aviso: “quando eu falo contigo, tu respondes, ouviste?”. Agredido e humilhado, dali se foi embora.
3 – Jacques Tati de Oliveira Guimarães deu o dito por não dito e regressou ao Centro Histórico. Ali se deteve entre reencontros e cumprimentos, acabando por se deixar estar num bar cimeiro da Praça de Santiago. Sem que nada o fizesse prever, um grupo de jovens por ele passoua correr, seguindo-se outro em igual número. Jacques observava esta forma de diversão atlética quando alguém lhe exclamou “tu!”. Jacques voltou-se e viu um par de raivosos olhos nele detido. Antes de lhes poder dar as boas noites, sentiu um punho quente assentar no seu queixo e no chão tombou, fechando-se sobre ele um círculo perfeito composto pelos jovens corredores. Ali ficou, contemplando atordoado o céu da Praça de Santiago. Ouviu um dos jovens dizer “não é este”, mote que serviu de retirada a todos os que o circulavam, incluindo quem o acabara de esmurrar. Agredido e humilhado, dali se foi embora.
4 – Jacques Tati de Oliveira Guimarães rumou, então, para a zona do Teleférico, esboço de uma nova centralidade anímica da sua querida cidade. No Parque das Hortas, alguém o fez optar entre uma facada nos intestinos ou uma nota de vinte euros. Jacques optou, e bem, pela segunda hipótese que educadamente lhe foi ofertada e ofereceu a nota de vinte duros. Rumou à zona de bares, onde centenas de corpos transpirados aguardavam vez para entrar. Ao chegar a sua, o corpulento porteiro perguntou-lhe se estava sozinho. Jacques, solipsista, sorriu e disse que sim. O porteiro, implacavelmente sério, lançou-lhe um convite para entrar cinquenta euros mais caro que todos os outros. Jacques insurgiu-se e, por dois instantes saiu do seu formalismo britânico, tendo lançado ao porteiro um irritado “porquê?”. Este, zelozo do seu dever, convidou Jacques para um passeio explicativo até às traseiras do bar. Quando Jacques esperava uma convincente justificação – e até estava disposto a aceitar o “porque você tem um blog” como tal – o porteiro colou-lhe o estômago à coluna com um poderoso murro, seguido de mais um sábio alerta: “nunca fales comigo assim, ouviste?”. Agredido e humilhado, dali se foi embora.
5 – Jacques Tati de Oliveira Guimarães contabilizava quatro agressões e uma imensa vontade em sair à noite na sua cidade natal. Rumou ao Centro Histórico pela terceira vez, convencido que a hora tardia lhe ofereceria a calma necessária para degustar um bom escocês nas calmas. De camisa vermelha e branca, já suja e transpirada, entrou num sobrelotado bar e pediu um velho caledónio nas rochas, que decidiu partilhar com uma jovem amiga que acabara de conhecer. O empregado perguntou-lhe “é você quem paga?” Jacques nem hesitou: “sim, e com todo o gosto do mundo”. Tal como Jacques, o empregado também não hesitou nem um mísero segundo e empurrou-o violentamente porta fora. Ao porquê de Jacques, obteve como seca justificação “reservado o direito de admissão: não queremos cá gente do Braga, ainda por cima com todo o gosto do mundo”. Agredido e humilhado, dali se foi embora.
6 – Jacques Tati de Oliveira Guimarães fora traído pelas vestes aproximadamente arsenalistas que envergava e por uma pergunta que foneticamente o confundiu. Decidiu, em coerência, rumar ao Arcebispado mais próximo, ciente de uma boa recepção. Ao passar pela Porta da Vila, deteve-se num individuo cujo rosto lhe pareceu familiar. A pretensa familiaridade esvaiu-se rapidamente num ameaçador “estás a olhar para onde, ò meu cabrão? olha para a frente se não queres comer”. Alertado por este imperativo, avistou os táxis à porta da Igreja de S. Pedro. Num Mercedes creme, rumou para a cidade vizinha, para aí tentar a sua sorte em dois espaços nocturnos lendários. Ao chegar ao centro histórico do arcebispado, viu-se envolvido no mais profundo silêncio, na mais fria das ausências. Ninguém lá estava. Jacques pode finalmente saborear o seu escocês velho, trazido numa garrafinha própria, sentado sozinho num banco de jardim.
Jacques Tati de Oliveira
Guimarães